Manuel Augusto M. de Araújo
Fui surpreendido pelo José Carlos Ferreira, meu condiscípulo, a pedir-me um breve apontamento feito memória do nosso Natal, quando frequentávamos e vivíamos no nosso La Salle, comunidade fraterna, na Quinta do Galo, em Barcelinhos.
Naquele tempo, no nosso tempo, fim dos anos sessenta e início dos setenta, o Natal era a época do ano que todos esperávamos e sentíamos mal começava o cair das folhas, o vento frio, o chão gretado pela geada, o musgo fresco e verde nos muros e o gelo, feito pista, na cobertura/passagem de cimento que ligava a galeria da Casa Grande ao Chalet.
Ainda não tínhamos entrado no período do advento, do calendário litúrgico, já o ambiente e espírito de Natal eram sentidos. Cumpríamos com zelo e empenho todas as rotinas diárias e semanais: levantar cedo, descer para a capela, em fila pelas escadas, oração, missa, pequeno-almoço no refeitório em mesas de quatro, limpeza e arranjo, por dentro e por fora, da sala da comunidade, copas até às casas de banho de fora por cima do lava-pés, aulas, intervalos, almoço, recreio, mais aulas, jogos, tempo de estudo, separado pela merenda em dois grandes cestos com pão, maçãs ou quartos de barra de chocolate, no terreiro das tílias. A tarde terminava com mais oração, jantar, conversa, seguida de uma hora de leitura, que podia ser amena ou espiritual, e dormir na grande camarata de camas rigorosamente alinhadas, separadas por um armário com os nossos pertences e onde estava sempre aquela bata cinzenta, guarda-pó, resguardo momentâneo da nossa nudez. Durante a semana, à quarta-feira, às vezes, para além de atividades desportivas, ainda havia tempo para uma caminhada à “carreira de tiro”, com direito a uma chocolatada, à Franqueira, Monte do Facho, Areias de Vilar ou aos moinhos de vento do Monte de Airó, caminhadas essas marcadas pelo ritmo do bom asturiano Ir. Afonso.
O Natal começava, de mansinho, com pinturas e desenhos, a guache ou lápis de cor, de motivos natalícios, uma paisagem, um presépio, uma vela acesa, uma folha de azevinho, a contemplar a beleza dos postais de Guti, com a preparação e ensaio de umas rábulas de comédia e teatrinhos, poesia, acordes de viola e sopros de flauta da Silent Night/Noite Feliz e do The Little Drummer Boy / O caminho que leva a Belém, para a festa de Natal antes de ir de férias, matar saudades, na casa de cada um, junto da família de sangue, diferente da de La Salle, também família de espírito e de ideal.
No dia anterior à saída subíamos ao sótão, pela escada estreita, onde as malas, quase todas de cartão, estavam todas penduradas, pegávamos cada um na sua e lá íamos nós cada um para a sua casa. Que podia ser perto, à volta de Barcelos ou nas freguesias de Braga, Famalicão, Vila Verde, Esposende, Guimarães ou longe, naquele tempo muito longe, como as de Resende, Régua, Lamego e Castro Daire.
E chegávamos à nossa casa, entrando pela porta da cozinha, olhando para a pedra da lareira, sempre acesa, com cheiro a fumo e beijávamos e abraçávamos os nossos pais e irmãos com os olhos humedecidos pelo fumo da cozinha, pela saudade, ou … pelo pensar na pobre e velha senhora Ana, que vivia sozinha num tugúrio, em Alvelos, e a quem o Ir. Emílio Lopez Mazariegos nos levava a visitar sempre que podia, uma forma simples, mas santamente humana, de nos ensinar a celebrar o Natal, olhando para o outro, para o pobre que vive perto de nós e fazer qualquer coisa por ele. Uma ação, um gesto, uma palavra, um sorriso.
Feliz Natal!